CASO CONCRETO; QUAL O VAOR DA LEI ORGÂNICA?

TRABALHO PROPOSTO PELA FGV. Você está andando pela orla de Copacabana, em uma tarde ensolarada de domingo. Ao parar para descansar em um quiosque, vê uma família inteira — um casal e três filhos adolescentes — jogar na areia todos os cocos que tinham acabado de tomar. Ninguém em volta parece ter ficado muito incomodado com o gesto. Infelizmente, você pensa, esse tipo de desrespeito parece ter se tornado banal demais em nossa cidade. Logo, porém, repara não ter sido o único a prestar atenção na cena. Um Agente de Fiscalização de Limpeza Urbana, que estava passando pelo local, prontamente saca do bolso um bloco e preenche alguma coisa em uma folha, que então destaca e entrega à família. — “Isso é um Auto de Infração”, diz o Agente. “Os senhores acabaram de violar o Art. 83 da Lei Municipal de Limpeza Urbana e, por isso, devem pagar uma multa, que estou fixando provisoriamente em R$ 300,00. Se os senhores quiserem contestar a multa, sugiro seguir os procedimentos do Decreto 21.305/01 da Prefeitura. O Decreto pode ser encontrado na página da COMLURB na Internet. Alguma dúvida?”22. A família fica atônita. O pai se levanta, revoltado. Começa a discutir com o Agente. Curioso, você se aproxima disfarçadamente para ouvir a discussão. Logo percebe que o argumento principal do pai para não pagar a multa é a suposta falta de autoridade do Agente. Quem ou o que lhe conferiu esse poder de aplicar multas? A família parecia não ver razão alguma para obedecê-lo. “Até porque”, argumenta o pai, “ninguém nunca ouviu falar de agentes da COMLURB aplicando multas por alguém ter jogado lixo no chão”. Você repara que boa parte dos curiosos que acompanham a discussão parece concordar com a afirmativa. A aquiescência é ainda maior quando ele arremata: “Todo mundo faz isso e não é multado. Por que você acha que nós deveríamos te obedecer? Essa é uma lei que ‘não pegou’; se ninguém obedece, você não pode aplicá-la.” O Agente de Limpeza está um pouco desorientado. Ele é novo nesta área e ninguém havia questionado sua autoridade antes. A impressão é de que ele mesmo começa a duvidar da validade do seu ato. O Decreto 21.305/01 da Prefeitura confere aos Agentes de Limpeza a responsabilidade de aplicar as multas e penalidades previstas na Lei Municipal de Limpeza Urbana — isso foi tudo que lhe disseram durante o seu treinamento, concluído há alguns meses. Mas por que o Decreto e a Lei Municipal devem ser obedecidos? De onde vem, em última instância, a sua autoridade, se não dessas duas leis? É uma questão que nunca tinha passado pela sua cabeça. Vejamos: a Lei Municipal de Limpeza Urbana (Lei 3273/01) estabelece em seu artigo 83 a penalidade que foi aplicada à família no quiosque. Indiretamente, esta lei confere validade ao auto de infração celebrado pelo Agente de Limpeza, pois ele recebe sua competência para aplicar multas por meio do Decreto Municipal 21.305/01, que regulamenta a Lei de Limpeza Urbana. (Esta é, aliás, uma limitação importante de Decretos em geral: eles não podem criar obrigações e direitos novos, mas apenas detalhar, especificar e regulamentar direitos e deveres que já tenham sido criados por alguma lei. É por isso que, acima, fez-se referencia ao Decreto como regulamentando a Lei de Limpeza Urbana). Uma questão, porém, permanece em aberto: de onde a Lei de Limpeza Urbana retira sua autoridade? Certo, ela dá validade ao decreto, que dá validade à multa aplicada pelo Agente. Mas o que confere validade à Lei 3273/01? Refletindo sobre a questão e pesquisando um pouco na Internet, você pensa ter encontrado uma solução para a questão. A Lei de Limpeza Urbana é válida por ser um ato legislativo conforme os parâmetros e a competência estabelecidos na Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, cujo artigo 30 e seus incisos I e VI estabelecem ser competência do Município “legislar sobre assuntos de interesse local” e “organizar e prestar (...)”, entre outros, os serviços de “limpeza pública, coleta domiciliar” e “remoção de resíduos sólidos”. Como estudante de Direito, você sabe que a Lei Orgânica do Município do tem previsão constitucional. Diversos dispositivos da Constituição conferem aos Municípios a prerrogativa e o dever de se organizarem para cumprir suas tarefas junto à população, especialmente os artigos 23, VI, 29 e 30, I, que dispõem: Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: VI — proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas; Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos (...) Art. 30. Compete aos Municípios: I — legislar sobre assuntos de interesse local; V — organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; Tentando representar graficamente suas conclusões, você chega ao seguinte resultado: Art. 23, VI, art. 29 e art. 30, I da Constituição Federal de 1988. Art. 30, VI da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro. Lei Municipal de Limpeza Urbana (L7e3i /n 0.1 3) Art. 4º do Decreto Municipal 21.305/01 Auto de Infração emitido por Agente de Fiscalização de Limpeza. Observando essa “cadeia de validade”, você se detém no último quadro — a Constituição Federal de 1988. Todos os outros quadros são concretizações de competências e deveres direta ou indiretamente estabelecidos nesta Lei Maior. Em última instância, é ela que confere validade a todo o resto do ordenamento. A obediência à Constituição exige que obedeçamos também à Lei Orgânica do Município, que exige que obedeçamos à Lei de Limpeza Urbana, que exige que obedeçamos ao Decreto 21305/01, que nos obriga a reconhecer a validade e autoridade do ato praticado pelo funcionário da COMLURB, por mais inconveniente que seja. Será que isso responde à questão do Agente de Limpeza? Vejamos. Tudo parece ser uma conseqüência lógica da aceitação da validade da Constituição. Se reconhecemos a Lei Maior de nosso país, reconhecemos também a validade de toda norma jurídica (lei ordinária, lei completar. Segundo Raul Machado Horta, “O poder constituinte é o responsável pela elaboração da Constituição. A função constituinte é a atividade desse poder criador da Constituição. Em qualquer de suas denominações — Assembleia Nacional Constituinte, Congresso Constituinte, Convenção Constituinte —, que servem para identificar o órgão, o poder constituinte originário é sempre o autor da Constituição.” (Direito Constitucional. 4a ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. P. 51) Lei complementar, lei orgânica, decreto, regulamento etc) que tenha sido formulada de acordo com os parâmetros ali previstos. Mas... por que aceitar a validade da Art. 23, VI, art. 29 e art. 30, I da Constituição Federal de 1988. Vários autores tentaram responder a essa pergunta. Dependendo da perspectiva, o fundamento da obediência à Constituição — de onde o resto do ordenamento jurídico retira sua validade — pode ser a vontade de Deus, a razão universal, a natureza humana, o simples fato de ela ter sido posta pelo Poder Constituinte23... O jurista austríaco Hans Kelsen é responsável pela formulação (e tentativa de resposta) mais famosa a esse problema. O primeiro formato que devemos compreender é a República, que se relaciona com a Forma de Governo adotada. O Brasil optou pelo modelo republicano como modo no qual o poder político é estabelecido. Assim, diferentemente do que acontece em um Estado Monárquico ou Oligárquico, na República esse poder pertence ao povo, exercido direta ou indiretamente, por meio de seus representantes. O outro modelo mencionado é a Federação, ligado à Forma de Estado. Das duas opções usualmente escolhidas, Estado Unitário ou Estado Federado, o Brasil optou pela Federação, que basicamente significa existir um ente central, a União, e outros descentralizados, por exemplo, os 27 Estados Federados, que gozam de certa autonomia e organização. Há uma Constituição da República (usualmente chamada de Constituição Federal), que trata de aspectos tanto da federação quanto especificamente da União, e Constituições dos Estados, que devem respeitar os limites estabelecidos na Lei Maior, a Constituição Federal. Esse tipo de Federação é o que chamamos de federalismo de segundo grau (a forma mais básica), pois apenas a União e os Estados-federados possuem autonomia política. Bom, aqui começa um ponto importante do nosso debate. O Brasil adotou, a partir da Constituição de 1988 (vigente atualmente), o federalismo de terceiro grau. Nas federações de segundo grau, ainda que exista a presença dos municípios, eles não possuem autonomia política. Nas federações de terceiro grau, como ocorre em nosso país, nos três âmbitos – federal, estadual e municipal – é possível criar leis, organizar os serviços que lhe são próprios e garantir a sua autonomia política. Dessa maneira, na esfera municipal, não existe uma Constituição, mas sim uma lei orgânica, que tem a “aparência” de uma Constituição para o município, já que é a norma própria de maior importância política, mas formalmente considerada simplesmente uma lei. Em síntese, as leis orgânicas dos municípios são normas que regulam a vida política na cidade, sempre respeitando a Constituição Federal e a Constituição do Estado em que o município está inserido, sendo um importante instrumento para forçar o poder público a assumir obrigações de interesse local em favor da população. O espaço para inovações na legislação não é muito amplo, haja vista a existência de barreiras previstas na legislação federal e estadual a serem observadas, mas ainda assim é considerado um avanço democrático a sua existência, já que antes de Constituição de 1988 havia uma restrição maior à autonomia municipal. Enfim, a lei orgânica é uma forma de regular a autonomia de cada município e, através dela, podemos mais facilmente alterar uma lei que nos afeta diretamente, desde que seja de interesse público dos moradores da cidade.

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